Privilégios
Antes de tudo eu acho que preciso dizer aqui que eu tive muitos privilégios na vida. Sério. Muitos.
Desde pequeno estudei no melhor colégio da minha cidade, bolsista, mas ainda assim estudei lá. Meus pais tiveram condição, não sem muito suor, de me proporcionar isso e muito mais. Desde pequeno eu lembro de viajar para o Rio e ir em museus, visitar exposições e expandir os horizontes além Vale do Paraíba. Lembro que desde muito pequeno os meus pais falavam:
“Estudem. Quer fazer um curso? Pode se inscrever que damos um jeito!” - Seu Zé Cássio e Dona Soraia
E realmente, sempre deram um jeito. Sempre que possível eu me virava pra aliviar a barra pra eles, tentando aprender sozinho, mas nem sempre isso era possível.
Eu lembro também de ouvir isso:
“Tem que ser Federal, hein!”
E de fato, tinha mesmo.
E eu não fui privilegiado só por ter meus pais, fui muito mais. A gente tem uma trupe de amigos. É sério.
Quando fui fazer o vestibular seriado da Federal de Juiz de Fora eu fiz uma rifa e não lembro de um que não ajudou. Na realidade, nem fui eu mesmo que fiz a rifa. Obrigado, pai. Te amo!
Isso acabou de me lembrar a história da construção da nossa casa que dá uma aventura por si só e que a minha mãe chegou até publicar em um blog.
E felizmente consegui fazer isso acontecer. Mas isso não deixou a empreitada mais fácil: tive uma mudança corrida pro Rio, em uma república bem perto da minha Universidade, lá na Ilha do Governador. Era barata e boa, pelo preço. Lembro que rolou a mão de muita gente pra eu chegar lá.
Mas enfim, não é sobre isso que eu queria falar nesse texto. Bem é também, mas o foco é outra coisa.
Necessidade?
Como já falei, a necessidade que passei, felizmente, nunca foi de nada vital. Mas como toda criança, eu queria brinquedos e, mesmo ganhando alguns aqui e outro ali, num tinha como comprar todos. Afinal, como comentei, o foco daqui de casa sempre foi a educação. Tanto minha quanto a de minha irmã caçula. Mas isso não impedia do pequeno João de querer jogar Tibia com uma conta Premium (que basicamente desbloqueia uns 80% do conteúdo do jogo). Eu queria poder usar as magias de ataque pra derrotar os monstros mais destemidos.
Mesmo jogando Tibia há quase 15 anos, nunca fui um bom jogador. Pois é…
Agora, porquê diabos você está falando de Tibia em texto cujo título é “A curiosidade e a necessidade”, João? Tá maluco?
Bem, eu chego lá, confia em mim. Eu sei que falo (e escrevo) muito, mas confia que eu chego lá.
Eu to comentando sobre isso porque foi numa dessas frustrações com o servidor oficial do Tibia que eu comecei a jogar um servidor pirata. Talvez o nome do servidor tenha sido TibiaPK, não me lembro ao certo.
Lembro que um amigo quase ficou de castigo porque o fundo da tela de login era um Demon feião.
Só que nesse jogo, embora eu conseguisse usar as magias com os meus amigos ainda tinha um sistema de VIP. Tinha uma galera que tinha benefícios por ajudar o servidor financeiramente, o que é bem compreensível. Mas ainda assim, frustrante pro João de 9 anos. Eu queria ter tudo liberado!
Daí surgiu a minha primeira pseudo-necessidade. Talvez esse termo seja mais honesto mesmo.
O início da aventura
Eu não sei porquê essa história me marcou. Olhando pra trás, certamente essa não foi a primeira vez que eu senti uma pseudo-necessidade, mas eu acho que ela foi a primeira que mexeu comigo, desculpe a repetição de termo, me fez me mexer. Alguma chave tinha virado.
Pouco tempo depois, eu já me encontrava pesquisando como eu subiria o meu próprio servidor de Tibia. E, pra minha alegria, com sucesso.
Ali foi um momento marcante. Finalmente eu era, como a gente chamava na época, o GOD, o deus do servidor! Criava e descriava itens, me teletransportava pra cima e pra baixo e tudo mais que me desse na telha!
Mas a pseudo-necessidade teve uma filha. Eu queria que o meu servidor, se não me engano era uma versão 8.50, tivesse os mesmos sistemas de um servidor que joguei por bastante tempo com os meus amigos e me gerou memórias muito boas. E aí pronto. Mini-João não conseguiu descansar mesmo depois de ter criado seu próprio servidor.
Esse também foi um primeiro contato que me lembro com a programação. Embora eu não entendesse muito da mágica que rolava nos arquivos em LUA.
Eu fiquei quase que num frenesi. Precisava colocar os mais variados sistemas no meu servidor. Não importava muito que só eu e talvez duas ou três pessoas estivessem online por lá. O que importava pra mim era conseguir colocar todos (e sim, eu estava quase megalomaníaco) os sistemas customizados que o pessoal compartilhava lá me fizesse pensar “Caramba! Meu servidor precisa disso!!!“. E assim, até que eu fui bem sucedido em colocar a maioria deles.
E eu fui lembrar dessa história um pouco depois.
Esmiuçando e desmontando
Meu pai sempre me ensinou a fazer coisas manuais. Lembro de ter que vencer, mesmo que temporariamente, o medo de altura e ir trocar a lâmpada da sala. Indo até o último degrau, claro, pois eu ainda era um pequeno João.
Mas a questão é que eu tinha afinidade com ferramentas, aprendi também como fazer troca de tomadas e quando eu fui pro Rio, já sabia me virar relativamente bem. Inclusive, fui precavido. Meu pai me deu uma caixa de ferramentas com um kit de sobrevivência ali.
Outra lembrança que me veio a mente, na verdade essa veio em bando, foram as vezes que ouvi me gritarem do computador de casa perguntando o que eu tinha feito de errado. A culpa era sempre minha e até certo ponto era verdade. Nunca descobri se era dedo podre ou azar. Mas sempre estava futucando as configurações do computador e lembro de abrir os computadores pra ver como funcionava tudo lá dentro (não descobri muita coisa, mas tudo bem).
Eu to falando disso tudo porque certa vez, meu irmão, que é mais velho e já trabalhava, me ofereceu dois mouses sem fio que não estavam muito legais e eu, provavelmente com os olhos brilhando, disse “Quero!” sem nem saber direito do defeito que eles tinham. Nesse momento, tal qual o mini-João decidindo sobre o seu próprio servidor de Tibia, eu decidi que iria ter o meu mouse sem fio. E que faria ele funcionar custe o que custar!
Quando os mouses chegaram, dois Logitech: um cinza e outro preto, fui logo testar e meu irmão comentou: “O clique deles não tá muito legal”. Respondi de prontidão com um “Não tem problema! Muito obrigado”. Tavam ali, nas minhas mãos! Eu já era mais velho mas achava de outro mundo essa coisa de mouse sem fio. Eu usava um mouse de marca qualquer que se compra com R$15 na papelaria da esquina. Eu achava muito legal a ideia de conseguir usar uma coisa dessa. De verdade. E aí eu fui pesquisar na internet como eu resolveria aquele problema de clique duplo, que realmente, atrapalhava e muito o uso dos dois. Fiquei feliz ao ver uma possível solução: “Retire a pilha e clique incessantemente por dois minutos”. Dois minutos depois eu já não estava tão feliz. Eu percebi que a solução ia ser um pouco mais trabalhosa do que isso.
E foi então que eu corri pra buscar um joguinho de chave que meu pai também me deu de presente quando ele percebeu que desmontar o meu notebook tinha virado um hábito. Um joguinho muito bom por sinal, amarelinho. Está até hoje na minha gaveta e talvez seja um dos presentes que mais usei em toda minha vida. Chaves e mouses em mãos, corri pra internet. Como diabos eu abria aquilo? Só tinha um parafuso visível. E só depois de abrir o compartimento de pilhas! Pouquíssimo tempo depois, estava eu torturando os pobres mouses. Pronto, parecia uma cena de filme de terror. Os dois na minha mesa, completamente abertos. Circuito num canto, carcaça no outro. Porém, empolgado. Estava uma etapa a menos da solução do meu problema. Mas e qual era o próximo passo?! Peloamordedeusalguémmedizoqueeuprecisavapraresolver-omeuproblemaeserfelizusando-meumousedasalaenquantoocomputador-tavanamesasóprapoderexibir-quemeumouseestavafuncionandosemproblemas! Calma, respira. Já passou. Foi só pra tentar representar como estava a minha cabeça à época. Felizmente e infelizmente, descobri que o problema era comum: o gatilho do botão ficava torto com o passar dos cliques e ele gerava essa problemática toda. Depois de um cuidado muito grande tirando a tampinha da caixa do gatilho (as cores estão gravadas na memória até hoje: a base e um conector pro gatilho são brancos e a tampinha é verde), e um cuidado maior ainda pra conseguir encaixar o gatilho de forma certa com uma pinça que demorei pra devolver pra bolsa de minha mãe, eu consegui. Fiquei tão feliz quanto incrédulo. Eu tinha conseguido consertar o mouse. Na verdade eu tinha conseguido consertar OS mouses! Felicidade era pouco pro que eu tava sentindo. Mesmo que o mesmo problema tenha se repetido de novo e de novo, eu sabia resolver. Já vão fazer mais de 5 anos que os mouses me acompanham. Ou melhor, um deles me acompanha. O cinza, que dava menos problema, foi repassado pro meu afilhado.
Tentando amarrar os fios soltos
Agora João, cá entre nós, textão desse tamanho e po, tu já falou de joguinho e agora falou de mouse. Pra que, cara? Então, como falei, não tive que consertar os mouses uma ou duas vezes. E em uma dessas sem-número de vezes, eu me dei conta do quão importante essas duas coisas foram pra mim. Eu podia ter falado aqui das apostilas de xadrez (que volta e meia dou uma revisitada) ou dos teoremas matemáticos que tinha que provar no colégio (e fazia com uma felicidade tamanha também!), que me marcaram, claro. Mas o que eu acho de especial nessas duas histórias é que esse tipo de problema não foi proposto por alguém, foi um processo espontâneo. Mini-João-deus-do-servidor nunca iria imaginar o efeito que aquela persistência teria. E fico muito grato por ter tido essa experiência. Porque foi com elas que eu comecei a me desenvolver como ‘resolvedor de problemas’. Quando percebi que eu podia consertar um mouse sem fio e subir o meu próprio servidor de Tibia, nasceram três coisas: uma bagunça no meu quarto, porque eu comecei a pegar vários equipamentos velhos pra tentar consertar, um além-mundo de ideias que a minha imaginação me permitiu desde então e por último, mas não menos importante, a sensação de que eu conseguia fazer a parada acontecer. No início mesmo sem saber como, mas eu fazia acontecer.
E fico feliz que a minha jornada com a computação tem muito disso. Lembro que cheguei na faculdade sabendo fazer apenas um jogo de adivinhação em Python e em Bash, únicas linguagens de programação que sabia. E sabia mal. E olhando pra trás eu fico feliz em ver meu caminho, mesmo que capenga, na faculdade. Eu lembro de alguns momentos de chave onde as coisas começaram a se encaixar: quando eu entendi, mesmo que mais ou menos na época, como um servidor Web funcionava, quando eu perdi o medo de pedir ajuda pra não atrapalhar a entrega de um projeto, quando eu perdi o medo de quebrar máquinas virtuais (Pois é, eu sei que era só destruir ela e subir de novo, mas eu tinha medo de alguma coisa dar errado), ou quando eu percebi que consegui explicar como um servidor funcionava pra pessoas que nunca programaram na vida. E espero que essas lembranças se perdurem por muito tempo na minha memória, pois caso você não tenha percebido, guardo elas com bastante carinho.
E é isso. Muito obrigado por ler até aqui!
Até a próxima!